A 1° Feria do Livro em Lauro Müller reuniu amantes da leitura, curiosos e escritores. Deste último grupo nós tivemos a honra de ter presente Flávio José Cardoso, o escritor Lauromullense veio especialmente de Florianópolis para participar da feira, e em uma conversa ele fez um curioso relato, um dia quando criança, seu sonho foi “ser locutor da Rádio Cruz de Malta”, e na chamada “adultez” não obstante, publicou uma crônica que foi veiculada no Diário Catarinense, chamada Um teste. Confira :
“O radialista Walter Filho me disse que começou a carreira na Cruz de Malta, a nossa Cruz de Malta de Lauro Müller, e isso me trouxe uma certa melancolia. É que eu pensei um dia em também ser locutor da Cruz de Malta. Foi uma ideia pretensiosa para a minha idade, não podia mesmo ter dado certo, paciência.
Tinha uns 13 anos. Aplicado ouvinte de rádio, me empolgava com a voz de César Ladeira lendo a “Crônica da Cidade” de Genolino Amado, a de Heron Domingues fazendo o imperdível “Repórter Esso”. Isso na Nacional. Na Tamoio, curtia um tal de Nino Prates, que aparecia por volta das seis da tarde, perto da célebre “Ave Maria” de Júlio Lousada. A voz desse Nino Prates, de quem nunca mais ouvi falar, me ficou soando na memória, era uma voz de belos recursos. Como ele dizia bem o anúncio da Hepatina Nossa Senhora da Penha! Nem sei como nunca tomei aquele remédio mesmo tendo o fígado em ordem. Eu ouvia muito também o pessoal da Record de São Paulo e, ali perto, da Tubá de Tubarão, de propriedade de um amigo de mocidade do meu pai, Seu Edgar Lemos, e da qual ele, meu pai, foi correspondente no Guatá e redondezas. De vez em quando saíam na Tubá umas dedicatórias musicais a aniversariantes da região: meu pai era o intermediário daquelas gentilezas. Eu mesmo, pelos nove, dez anos, fui presenteado com os sucessos do caubói Bob Nelson, meu herói musical da época. Essas dedicatórias acho que Seu José arrumava de graça.
Mas bem, de tanto ouvir locutores, fui tendo a louca ousadia de querer ser um deles. Por que não ser locutor da Rádio Cruz de Malta, que estava ali tão perto de nós? Por que não ser colega de Seu Benjamim Barreto e do Valmor Jung? Naqueles devaneios, nem me dava conta da minha idade.
Tanto chateei meu pai que ele prometeu falar com o Monsenhor (a rádio estava ligada à paróquia) e um dia ele voltou me dando a felicíssima notícia: eu ia ser chamado para fazer um teste. Fiquei esperando esse dia glorioso. Glorioso, sim, pois eu estava certo de que passava brincando em qualquer teste que me fizessem. Para ser bem verdadeiro, eu naqueles anos de inocência me considerava dono de uma voz privilegiada, esplêndida. Lia trechos de revista em voz alta, pensando ora em Heron Domingues, ora em César Ladeira, ora em Nino Prates, e minha impressão era de que não ficava devendo nada a nenhum deles.
A verdade, meu caro Walter Filho, é que o excelentíssimo e reverendíssimo Monsenhor nunca me convocou. Foi uma expectativa agoniada e vã. Meu pai disse que a gente devia esperar – numa hora qualquer, quem sabe… Que esperar! Cheguei, num certo momento, ao sacrilégio de imaginar que meu pai inventou a promessa daquele teste. Não, não, o Monsenhor é que não levou a sério a minha determinação, preferi pensar. Felizmente, aquilo foi febre passageira, logo me interessei por outras coisas, mas ficou a raiva pelo teste que não houve.
O Monsenhor… Ele deve estar no céu – se um monsenhor não vai para o céu, quem que vai? Eu só queria que o Monsenhor um dia sentisse vontade de ser locutor lá por cima, ele com aquela voz fanhosa que era um suplício nos dias de missa. Só queria que o deixassem esperando um teste pela eternidade afora…”
(“Diário Catarinense”, 31.08.1989)